domingo, 25 de janeiro de 2009

Sobre o começo.

O primeiro cuspe ao chão fora às sete horas, não nas artérias principais, ainda sem movimento, mas nas ruas secundárias, onde tudo começa mais cedo nessa época do ano.As portas dos bares sobem, os panos limpam mesas, o pão cheira a rua toda. Amanhece em Porto Alegre.Junto dela, está o homem do séc XXI, o precursor do super-homem de Nietzsche, ao chão, uma mancha negra na paisagem. Chega a confundir-se com tudo aquilo que resta de inumano nas beiras de estradas mortas.Cá estou eu, o câncer, o mosquito, a camisinha na vida do cidadão de bem.Escureço seus olhos, então vos fecham! O som de minha voz é rouco, agudo, irritante, portanto não dê ouvidos. Meu gosto é ruim, sou fibra pura. Meu gosto é ruim. Engasgaria e morreria comigo em tua goela, ó homem de bem! Por isso não me engulas! Não me tolere. Não me mates, me ignore. Exatamente isso, me ignore.
- Deveria escrever o que penso, digo em voz alta, enquanto ergo as calças encardidas e saio do chão-cama. Nunca sem atrair olhares. Por que não deixam os homens gênios como eu em paz! Confundem minha presença com a de mendigos. Há uma diferença gritante em nossas existências.
- É PORQUE EU TÔ CAGADO, NÃO É SEUS SAFADOS?!
O homem de bem que passa, baixa a cabeça e a torce, em sinal de pena. Pobre velho! Pensa ele, como terá se tornado esta aberração. A garçonete limpa as mesas com um pano em que nem eu secaria as mãos e lembra-se do pai. Reza todas as noites para que o pai pare de beber e bater nela, na mãe e nas irmãs. Acho que Deus não lavou bem as orelhas, caso contrário, seu terceiro aborto não precisaria ter ocorrido. Ou Ele está muito ocupado jogando canastra com os Santos. Há um homem destes em mim, ela pensa.Consigo sentir o olhar dela, vê em mim o pai estrupador, a repulsa, ela sente ódio de alguém que nem conhece, mas tem o mal encravado nas costas.- Não sou como tua vendeta, garota!!, grito do outro lado da calçada.Ela enfia a cabeça nos ombros e some em meio à escuridão do bar. Sabia, não suportaria um debate comigo. Aposto que mal sabe falar, expressar-se, nem pensar. Deve ser daquelas que deita e abre as pernas, com olhos tristes e sem vida, esperando o cão raivoso em cima dela acalmar-se, para que possa virar, dormir, descansar nem que seja um pouco e, no dia seguinte, trabalhar como uma escrava começando tudo de novo. Como sempre tem sido. Todos os dias.
- Não te culpo pobre menina! Culpo o safado que te fez mal e destruiu teus olhos!, grito me afastando cada vez mais. De longe dava pra ver a opacidade de seus olhos. Não deveria gritar tanto, estava me tornando patológico.Em outros tempos haveria de me preocupar, mas não hoje. Não havia sinal de policial algum, ou machões desses que adoram fazer-se de heróis às custas dos pobres, cânceres sociais como eu.
- PUTA MERDA, já to me sentindo um deles!,torno a gritar. Dessa vez, sinto que fui longe. Calo-me e sigo na direção do rio.Gostava muito rio e de tudo à sua volta, principalmente, a ausência de outras pessoas. Ficavam horas em meio à calmaria e à sujeira, ossos de animais, cabeças de bonecas, chuveiros, velas, pipocas, garrafas, braços. Uma vez até um pequeno cabrito. Era um lugar místico, surreal. Podia tocar a água como uma lâmina em um projetor, distorcendo a cidade a minha volta. Fazia pensar muito em antigos quadros que fazia, onde o sol amarelo escuro tornava Porto Alegre amanteigada e tenra. Sempre as custas do Guaíba.
- Devia voltar a pintar.
- E por quê não volta?
Dou um pulo, escorrego por entre as pedras úmidas e cortantes da beira, de nada adiantam meus anos de convivência naquele lugar, um susto sempre tira nosso chão.Ofegando meio corpo dentro e meio fora da água fétida, tento imaginar de onde viria a voz. Não acreditava em schizofrenia e nunca mais fora adepto dos sistemas extracorpóreos. Atrás de uma árvore miúda, de galhos escuros, porém com muitas folhas, surge uma mulher. Vestia corsário, moletom largo, de cabelos compridos e muito pretos. Não dava pra ver se eram lisos ou cacheados, tinham o aspecto de sujeira de dias. Na certa uma usuária de algum tipo de droga pesada, pra estar ali, do jeito que estava. Mas era só olhar pra mim e ver que esta podia ser até a rainha da Inglaterra no momento.
- Você era pintor?, pergunta a garota, apoiando um dos braços na delgada árvore, inclinando todo o corpo, como se ainda estivesse 'curtindo uma viajem'
- Era. Você me deu um susto danado garota.
- Há, há, há! Como pode um pintor ver tão mal uma mulher a sua frente?
- Não vejo onde uma mulher esconde-se atrás de arvores e rodopia nela. É uma garota, no máximo te daria 27.- Ah, obrigada, você é muito gentil...
- Hoje é quarta-feira.
Hoje era domingo, mas nenhum dos dois parecia se importar.
- O que faz aqui, por acaso pediu minha permissão para andar em minhas terras?, perguntei para ela.
Ela rodopiava nos galhos da arvore, olhava a água, e como olhava! Seus olhos brilhavam mais que o reflexo do sol, que começava a ficar forte. Nunca me olhava nos olhos. E era melhor assim.
- Que águas teriam este brilho se tivessem dono?
- Bom, pelo menos, não se trata de uma fanática.
- Fanática? E por que seria? E por que não seria?
- Pelo amor de deus, nada que me faça pensar a essa hora. Ainda nem bebi.
- São 9 da manhã pintor, seria melhor fazer um retrato de Miss Carolyne Boúchet!, e rodopiava e sorria como uma peça de carrossel.
- Pra ficar rico? Refiro a espalhar meu coco num papelão e imaginar a cara dos safados da bolsa de arte ao vê-lo.
- Xiii, pintor, essa tua birra deve ter arruinado a tua vida...
- O que arruinou a sua?
- A minha está ótima!
Nisso, a mulher, ainda sem nome, pára, senta.
- Tem um cigarro?
- Tenho.
- E fogo?
- Não, mas já tenho a desculpa perfeita para nos tirar daqui. Minha bunda tá encharcada.

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